sábado, 13 de outubro de 2012

22 à vista!


Quando criança, 
odiava azeitonas, e outras coisas verdes. Adorava chocolate, café e tinha uma quedinha especial por pimenta.
Passava horas desenhando, colorindo, escrevendo poesia e procurando palavras novas no dicionário.
Jogava o dente caído no telhado, atormentava a avó na companhia dos primos e enlouquecia a vizinhança com todo o barulho, tomava banho de mangueira no calor, rabiscava a parede da casa, enterrava objetos pelo quintal e depois não lembrava mais onde tinha enterrado o tesouro...
Não gostava muito de subir em árvores, nunca arriscou grandes alturas.
Também não a agradava certas brincadeiras de correr, de esconder... o medo de ser pega causava a ela uma grande ansiedade. Além disso, tinha medo de cair.
Quando aprendeu a andar, morria de medo de subir escadas. Demorou pra que fizesse isso sozinha. 
Quando cresceu, pegou mania de contar os degraus, um a um. 
Descia as escadas saltando os ímpares e saltava os pares na subida.
Morria de vergonha dos outros e vivia escondendo a cara redonda e rosada por trás do vestido da mãe.
Todo mês de maio se vestia de anjo, encaixava nas costas uma asa, colocava pétalas de rosas numa cestinha e ia "toda toda" coroar nossa senhora, se sentindo quase um anjo de verdade! Só pecava pelo trabalho que dava para a pobre da mãe.
Cantava alto na coroação. Cantava nas missas de domingo, regularmente. Cantava no chuveiro, no quarto, pela casa a fora, cantava, cantava, cantava...
Ia na casa paroquial pedir resto de hóstia pra brincar de comungar. 
Juntava com a molecada nos arredores da igreja. Brincavam antes e depois da catequese, até o padre ou a doninha que ajudava na igreja irem lá espantar a barulhada. 
Cresceu e se afastou tanto da igreja, criou uma religião própria, acredita no que acredita e não mais no que é convencida a acreditar. 
Mas ainda não come carne nas sextas-feiras santas, não anda de costas e muito menos seria capaz de deixar virado o chinelo que faz mãe morrer. Também evita passar debaixo das escadas e não simpatiza com os gatos pretos, mas nunca se considerou uma pessoa supersticiosa, se diz precavida e ainda fala que é melhor ser precavida para que não perca a vida.
A cor predileta era rosa.
Mocinha, 
andava segurando a barra da saia na ponta dos dedos, pisava cada pedra com cuidado e pulava aquelas que eram mais pontudas.
Gostava de escrever no corpo inteiro com canetas coloridas.
Gostava de pintar a cara e fingir que era princesa. Mordia maçãs esperando que algo acontecesse. Nunca foi possível saber se esperava a morte ou a vinda do príncipe depois de morder a maçã...
Gostava de ouvir o barulho das folhas secas sendo pisadas. 
Gostava de ouvir o barulho das gotas de chuva caindo no telhado, gostava de sair na chuva e às vezes se encharcava e tinha que andar pela casa na ponta dos pés.
Também fazia isso de madrugada, nas fugidas ou quando chegava de festa.
Também ficava na ponta dos pés para parecer mais alta nas fotografias.
Gostava bem dessa ousadia do corpo, na ponta dos pés tinha a sensação de estar sempre prestes a pular, ou a cair. 
Gostava bem desses riscos bobos...
Fazia todas as operações matemáticas com as placas dos carros e contava placas de trânsito durante as viagens. 
Parecia que estava sempre esperando alguém...
Ficava parada, por um longo tempo, na frente do relógio, acompanhando o movimento do ponteiro, hipnotizada pelo tique-taque que vez ou outra a fazia lembrar de alguma música.
Ficava horas encostada nas janelas, olhando para fora, procurando lá fora o que talvez encontraria dentro.
Ficava absorta na frente da porta olhando a rua, ou olhando o nada, reparando cada detalhe da roupa de quem passava, cada detalhe do cabelo, da pele, do jeito de andar... mas se a perguntassem, certamente nem saberia quem passou. 
Era distraída mas sabia das coisas. Gostava de perguntar e questionar quase tudo que ouvia e julgava importante. Gostava de pensar sobre questões existenciais, passou a achar a sua vida um grande mistério, não mais um milagre. 
A cor preferida passou a ser lilás. 
Mulher,
Ainda não tem respostas pra grande maioria das perguntas que se fazia e coleciona milhões de perguntas novas. 
Ainda tem medo de cair.
Ainda morde maçãs esperando que algo aconteça. 
Ainda não sabe o que tanto espera.
Segue odiando azeitonas e amando chocolate, pimenta e café.
E já não sabe mais qual é a cor favorita. 
É que a gente muda o tempo inteiro, mas o tempo não muda a gente inteiramente.

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